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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Incongruência de gênero - terapia hormonal no transgênero feminino (male to female – MTF, mulher transgênero)

Para a boa compreensão deste texto, é importante a compreensão dos seguintes termos:
1- Identidade de gênero: a percepção do indivíduo em sentir-se pertencente ao gênero masculino, feminino ou de nenhum (gênero não binário).
2- Sexo biológico: determinado ao nascimento em função do aspecto da genitália externa ou pelo sexo cromossômico (masculino, feminino ou intersexo) 
3- Expressão do gênero: como o indivíduo expressa seu gênero no mundo real, por meio da forma de agir, de se vestir, de se comportar.
4- Incongruência ou disforia de gênero: desconforto ou sofrimento que pode ocorrer quando existe uma incompatibilidade entre o sexo determinado ao nascimento e o gênero de identificação.
5- Orientação sexual: relaciona-se ao desejo sexual, atração física (homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual). 
6- Mulher transgênero: indivíduo com sexo biológico masculino que se identifica com o gênero feminino.
7- Homem transgênero: indivíduo com sexo biológico feminino que se identifica com gênero masculino.
8- Cisgênero: Quando existe congruência entre o sexo biológico e o de identificação.

Imagem: Joint Base San Antonio

Após o diagnóstico apropriado da incongruência de gênero e discussão dos riscos e benefícios do tratamento, a mulher transgênero poderá iniciar a terapia hormonal com o endocrinologista. O tratamento consiste basicamente na supressão dos androgênios produzidos pelos testículos e administração de estrogênio, com a pretensão de tornar este corpo mais feminino e com níveis hormonais mais próximos daqueles encontrados nas mulheres cisgênero em fase reprodutiva. Desta forma, podemos perceber redução do crescimento dos pelos corporais, da oleosidade da pele, da produção de espermatozoides, aumento do volume mamário, redistribuição da gordura corporal com aumento do depósito em regiões como os quadris e redução da massa muscular. Vamos entender, passo a passo, como funciona.

A terapia hormonal com estrogênios usualmente é feita através da administração de 17ß estradiol por via oral ou transdérmica. O 17ß estradiol é especialmente útil por permitir que os níveis no sangue sejam monitorados, além de apresentar menor risco de trombose, quando comparado ao etinilestradiol (este, não recomendado). A terapia com estrogênio, além de ser responsável pelas mudanças corporais desejadas pela mulher transgênero, também é capaz de suprimir a produção de androgênios. A administração do 17 ß estradiol sozinha já é capaz de inibir a produção das gonadotrofinas (LH e FSH), assim diminuindo a produção de testosterona pelos testículos. A paciente é monitorada regularmente para que os níveis de estradiol sejam mantidos entre 100-200 pg/mL de testosterona, abaixo de 50 ng/dL. Em grande parte dos casos, além do uso de estrogênios, também são usados medicamentos para inibir a secreção ou a ação dos androgênios. Para "combater" os androgênios, cujo principal é a testosterona, temos à disposição como primeira linha de tratamento a espironolactona e a ciproterona. A espironolactona é um antagonista estruturalmente semelhante aos progestógenos. Ela compete com a diidrotestosterona no receptor androgênico, inibindo a 5 α-redutase e, também, compete com o androgênio na ligação à SHBG (Globulina Ligadora dos Hormônios Sexuais). Desta forma é capaz de bloquear tanto a produção quanto a ação da testosterona. Também, pode ter uma pequena atividade estrogênica. Já a ciproterona tem efeito de suprimir a produção de gonadotrofinas, devido ao seu efeito progestágeno, além de bloquear a ação dos androgênios. Como segunda linha, temos os agonistas do GnRH, medicamentos injetáveis e de alto custo, que inibem a produção do FSH/LH e consequentemente de testosterona. Estas modalidades de tratamento podem ser usadas enquanto a paciente ainda tiver os testículos. O uso da progesterona para desenvolvimento mamário ainda é controverso, não sendo advogado por falta de evidências na literatura. 

Os efeitos esperados da terapia hormonal da mulher transgênero são:

Pelos (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo a partir de 3 anos): alguns pelos como os da barba podem ser resistentes à terapia hormonal, necessitando do uso de medidas complementares como o laser.

Mamas (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo em 2 a 3 anos): pode haver queixa de aumento da sensibilidade durante o desenvolvimento mamário. A adequada inibição dos androgênios potencializa o efeito do 17 ß estradiol. As pacientes precisam participar de exames de rastreamento de câncer de mama como qualquer mulher.

Pele (início do efeito em 3 a 6 meses): com o tratamento a pele costuma ficar menos oleosa e mais macia. 

Composição corporal (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo em 1 a 3 anos): é esperada uma redução no volume e na força muscular com acúmulo de gordura nos quadris, tornando as medidas corporais mais femininas.

Voz: as alterações da voz são praticamente imperceptíveis com o tratamento. A paciente deve ser aconselhada a fazer terapia da fala com fonoaudiólogo ou se submeter a procedimento cirúrgico nas cordas vocais.

Testículos e próstata (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo com muitos anos): o tratamento leva a atrofia progressiva dos testículos e redução do volume da próstata. Logo, pacientes que desejem manter a fertilidade devem ser devidamente aconselhados antes do início do tratamento. Paciente que permanecem com a próstata também devem fazer exames periódicos de prevenção como qualquer paciente do sexo masculino.

Função sexual (início do efeito em 1 a 3 meses - efeito máximo em 3 a 6 meses): a terapia hormonal da mulher transgênero leva a redução da libido, das ereções e da ejaculação em graus variados. Algumas pacientes, que desejam manter a função sexual, precisam ter as doses da terapia ajustadas. Nas pacientes que fazem cirurgia genital, a função sexual é variável e dependente da função sexual antes do procedimento, do tipo da cirurgia realizada e dos níveis hormonais.

Por fim, o acompanhamento regular com endocrinologista familiarizado com este tipo de tratamento deve ser frequente e regular para que se evite consequências tanto do excesso quanto da deficiência hormonal, tais como: problemas na libido, fragilidade óssea, aumento no risco de trombose ou mesmo de câncer.

Fonte: 
1- Hembree WC, Cohen- Kettenis PT, Gooren L et al. Endocrine Treatment of Gender-disforic/Gender-Incongruence Persons: An Endocrine Society Clinical Practice Guidelines. J Clin Endocrinol Metab 2017; 102:3869-3903. 

Dr. Mateus Dornelles Severo
Médico Endocrinologista
Doutor e Mestre em Endocrinologia pela UFRGS
CRM-RS 30.576 - RQE 22.991

Texto revisado pelo Departamento de Endocrinologia Feminina e Andrologia.

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